"Exemplaridades no Movimento Estudantil da UFRuralRJ"1
Lucília Lino de Paula (UFRuralRJ)

        Esta pesquisa construiu uma interpretação sócio-histórica do movimento estudantil da UFRuralRJ nas últimas décadas, destacando nas trajetórias dos militantes estudantis entrevistados as formas de inserção e atuação no movimento estudantil, o significado atribuído ao movimento como instância de formação política, sua influência no processo de construção das representações e modos de vida destes militantes. A pesquisa efetuou uma tentativa de cotejar e recompor várias leituras do mesmo objeto – o movimento estudantil, focalizando-o como um espaço-tempo de formação política com reflexos no desempenho acadêmico e profissional.

        A reconstrução da memória do movimento estudantil focalizou representações acerca da experiência política e universitária, inserida de forma relacional nas demais instâncias e espaços sócio-culturais vivenciados pelos sujeitos da pesquisa. O recorte utilizado – objeto, período, sujeitos – permitiu a análise das gestões do DCE, a partir da memória dos militantes, abordando o relacionamento com a reitoria, o embate das várias tendências políticas, a construção da participação política dos sujeitos, entre tantos outros aspectos. Esses aspectos propiciaram a formação de uma estrutura e volume de capitais que, segundo os depoimentos dos sujeitos, repercutem sobre as suas trajetórias sócio-profissionais. Esses capitais são evidentes na capacidade de negociação, no trato 'em pé de igualdade' com autoridades acadêmicas e políticas, na liderança e no trabalho de equipe, demonstrando a aquisição de um habitus universitário específico e de um 'senso de jogo' mais apurado.

        Entrevistas, individuais e coletivas, com estudantes2 que ocuparam posições de liderança no Diretório Central dos Estudantes (DCE), entre 1977 e 2002, constituíram o material empírico a partir do qual foi possível construir as categorias centrais da análise e interpretação. Os depoimentos permitiram traçar um panorama das trajetórias desses sujeitos, sua origem sócio-familiar, investimento escolar até o ingresso na Universidade. Neste artigo, apresento uma análise dessas trajetórias inserida na discussão sobre categorias geracionais, segundo Mannheim, e da diferenciação de capitais e constituição do habitus, de acordo com os estudos de Bourdieu (1983, 1989, 1996, 1999).

        Os militantes estudantis investigados, provenientes de regiões diferentes do país, e de estratos diferenciados da população, têm em comum o pertencimento a uma situação de geração personificada e vivenciada em uma Universidade com perfil diferenciado das demais instituições públicas do estado, tanto pela existência de um Alojamento que abriga cerca de um terço dos 6000 estudantes de graduação, oriundos de diferentes regiões do país, devido a realização de vestibulares em quase todos os estados da federação, muitos em cidades do interior3. Todos os entrevistados eram residentes dos Alojamentos ou de Repúblicas,e dado que a moradia comum favorece o estabelecimento de vínculos pessoais que a vida comunitária consolida, esta condição estimulou a inserção no movimento estudantil, devido à participação mais próxima e ativa na vida universitária.

        Para fins de análise foi realizado um recorte temporal, subdividindo o período estudado em dois segmentos que categoriza duas 'unidades de geração' distintas, denominadas primeira geração e segunda geração. Por um breve período4, alguns estudantes de gerações aqui consideradas distintas foram contemporâneos e participaram de movimentos comuns, enquanto os últimos integrantes da primeira geração5 concluem seus cursos e os da segunda geração 6 ingressam na graduação.

        A subdivisão em duas gerações facilitou a análise das influências que os militantes representam como advindas da experiência e do sentimento de pertença a uma determinada geração, em aspectos de sua vida social. O estudo das gerações permite 'a compreensão da estrutura dos movimentos sociais e intelectuais', principalmente em meio ao 'acelerado ritmo de mudança social característico de nossa época', como já constatara Mannheim (1982, p.67).

        O fenômeno social da 'geração' representa "um tipo particular de identidade de situação, abrangendo 'grupos etários' relacionados, incrustados em um processo histórico-social". Os indivíduos que pertencem a mesma geração ou grupo etário possuem uma 'situação comum' na dimensão histórica do processo social, que os predispõe a "um certo modo característico de pensamento e experiência e a um tipo de ação historicamente relevante". (Mannheim, 1982, p.72-3).

        Na Universidade há uma constante renovação do estudantado, garantida pelos vestibulares que alimentam o fluxo de estudantes a cada semestre, permitindo uma troca de experiência entre grupos mais e menos maduros, que vivenciaram situações e ações diferenciadas, de forma mais ou menos intensa. Esse processo contínuo, que impede um corte abrupto na transição de uma geração para outra, é sentido pelos próprios estudantes:

 
Temos que situar as gerações de estudantes que vão se alternando,ainda, que sem, necessariamente, um fio de continuidade. A minha geração, que entrou em 94, foi transitória entre aquele grupo da década de 80, inicio de 90, que pegou o 'Fora Collor'...Com os cursos são de 4 ou 5 anos, quem entra em 90 vai sair em 94, e naquele momento específico havia um fio de continuidade, pois os estudantes do 6º e 7º período se preocupavam com quem estava entrando, e mostravam a eles que a Universidade não era só ensino/pesquisa/extensão, mas que ia além disso...(Luiz Cláudio)

        Para Mannheim (1982, p.73), o fenômeno social da geração é um tipo especifico de 'identidade de situação' que abrange grupos etários relacionados, inseridos em um mesmo processo histórico-social. Mannheim (1982, p.86), classifica como uma 'geração enquanto realidade' aquela que possui "um vínculo concreto através da exposição aos mesmos sintomas sociais e intelectuais", assegurando uma participação no "destino comum dessa unidade histórica e social". O ingresso na Universidade favorece certa mobilidade social, podendo aproximar jovens de diferentes estratos sociais, integrando-os em uma mesma 'geração real'.

 
Na Universidade a gente se nivelava sim, ficava meio que igual. Ficávamos lá todo dia, e aquela convivência aproxima muito as pessoas, nos igualava de modo geral. Havia os ricos, os que tinham origem muito humilde, os outros tinham origem de classe média, mas não tinha problema, a gente se tratava igual, ninguém esnobava ninguém. (Eloy)

O campus faz a diferença, e o alojamento cumpria a finalidade de reunir os estudantes, de estar todo mundo junto vivendo a Universidade como um todo, e estando dentro dela pode-se viver esse universo. Morando lá a vida estudantil tem outro pique, e é uma coisa que não necessariamente acontece com todos. O alojamento era o centro da efervescência, da discussão e quem não estava ali perdia coisas fundamentais. Havia esse diferencial de fato. (Emília e Vera)

        A convivência no campus aproximava os estudantes e favorecia a constituição de uma 'geração real', que participa das "correntes sociais e intelectuais características de sua sociedade e período", experimentando as "interações das forças constituintes dessa nova situação" (Mannheim, 1982, p.86).

 
Foi muito marcante na nossa geração, ter saído da ditadura militar e saber que agora podíamos falar. Nossos irmãos mais velhos, nossos pais e tios não puderam se manifestar no nível que a gente se manifestava, não podiam fechar as estradas, não podiam ocupar o MEC, não podiam invadir reitoria e a gente podia. Não só aqui, mas nas outras universidades também. Só que aqui as pessoas conviviam, moravam juntas, dormiam juntas e comiam juntas, e viam os problemas e tinham a possibilidade de mudar aquele ambiente em que viviam: 'Não é essa universidade que a gente quer. E agora podemos falar, e quem entrou na Universidade 10 anos antes não podia'. E cada um veio com uma história diferente, mas houve um encontro comum, e naquele ambiente, naquele momento juntou todo mundo. (Beth)

        Esses estudantes, pertencentes a uma mesma geração real, vivenciam "os mesmos problemas históricos concretos", elaboram "o material de suas experiências comuns de diferentes modos específicos". A constituição de unidades de geração se origina de uma maior intensidade de vínculo que faz com que os indivíduos de uma mesma 'geração' venham a formar um grupo distinto dos demais jovens. Esse vínculo social que une alguns indivíduos de uma geração é produzido por "forças formativas que amoldam os dados, dando-lhes caráter e formação" (Mannheim, 1982, p.87).

        Entretanto, essa experiência geracional – que faz com que vários indivíduos vivenciem uma mesma 'similaridade de situação' num mesmo espaço social–favorece, mas não necessariamente obriga a uma associação desses estudantes em 'grupos concretos'. Visto que o 'grupo concreto', para Mannheim (1982, p.70) se caracteriza pela "união de um número de indivíduos através de laços naturalmente desenvolvidos ou conscientemente desejados", como a família, um grupo religioso ou um time de futebol. Sendo que o grupo concreto exige o reconhecimento de seus membros entre si, um contato próximo durante o período de participação.

       Os jovens que pertencem a uma mesma 'unidade de geração' podem vir a constituir ou se inserir em vários 'grupos concretos' na Universidade, como os que integraram as várias gestões das entidades estudantis, o grupo de teatro, ou capoeira, ou os integrantes da Pastoral Universitária. Além de integrarem uma 'unidade de geração' e compartilharem de uma relativa 'identidade de situação', pois sujeitos a um mesmo contexto experimentam a vida acadêmica num mesmo espaço físico e dentro de um mesmo campo de atuação social, esses estudantes podem integrar ou não, um ou mais 'grupos concretos' ao mesmo tempo. Assim, foi possível instituir uma distinção no interior de uma mesma geração de acordo com a intensidade e a forma com que seus membros participaram da realidade circundante.

        No fluxo constante de jovens que ingressam na Universidade recortamos as duas 'unidades de geração' analisadas. A investigação sobre essas duas gerações, no contexto de uma mesma 'situação de geração', apontou para as mudanças ocorridas no movimento estudantil, fruto do impacto das transformações sociais das últimas décadas.

        Ilustrando essa reflexão sobre diferenças intrageracionais, temos um depoimento que compara os sub-grupos geracionais, – que ingressam a cada ano e atuavam de forma mais ou menos engajada, – à 'safras' da lavoura, percebendo entre elas um diferencial palpável, embora não saiba explicar as razões:

 
A gente dizia que tinha 'safra' que entrava com um pessoal mais atuante. E 'safra', é papo de gente da Universidade, e uma 'safra boa' era um pessoal que tem potencial. No ano seguinte ou no segundo semestre vinha uma 'safra ruim', em que o pessoal não queria participar de nada. Todo o pessoal que estava no DCE em 80 e depois disputou a eleição de 80 p'ra 81 e de 81 p'ra 82, a maioria entrou em 78. O papo corrente era de que tinha uma 'safra' que atuava mais e outra que atuava menos. Por quê ? Não tenho idéia. (Elder)

        A análise de alguns aspectos relativos à origem social dos entrevistados e de seu perfil sócio-econômico permitiu identificar o peso da origem social na trajetória política, acadêmica e profissional. Entretanto, na maioria dos depoimentos atribui-se ao ambiente de efervescência política e cultural da Universidade e a influência inter-pares, o papel fundamental na socialização política e na inserção no movimento estudantil, chamando a atenção para a constituição de um habitus universitário.

        O conceito de habitus, desenvolvido por Bourdieu, representa a mediação entre indivíduo e estrutura, entre o sujeito e a história, sendo um

 
sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionarem como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente 'regulamentadas' e 'reguladas' sem que por isso sejam o produto de obediência de regras, objetivamente adaptadas a seu fim, sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem serem o produto da ação organizadora de um regente. (Bourdieu, 1983, p.61).

        O habitus, enquanto disposição incorporada durante o processo de socialização, se manifesta através dos comportamentos, gostos e atitudes que favorecem o desenvolvimento dessas disposições, ajustadas à posição social ocupada pelo agente no campo ou almejada por ele. O habitus pode ser objetivado através da posse de certos capitais, e pela atribuição e reconhecimento de seu valor no campo (Bourdieu, 1989, p.226). Assim, o peso relativo de cada tipo de capital na bagagem trazida pelo estudante ao ingressar na Universidade, – o volume e a estrutura dos capitais adquiridos ao longo da socialização familiar e escolar – é capaz de orientá-lo em suas escolhas éticas, estéticas e políticas promovendo uma diferenciação entre os agentes de acordo com essa bagagem também diferenciada.

        O habitus funciona como um modus operandi, que faz com que o agente aja numa determinada direção, que conforma e orienta a ação. Assim, o habitus é uma forma de interiorização da estrutura que vai acionar o próprio processo de inculcação das categorias e guiar a interpretação do real. E essa é a função do trabalho pedagógico, da família, da escola e da sociedade: "o próprio modo de apreender o mundo enquanto conhecimento", e que é considerado uma objetividade interiorizada (Ortiz,1983, p.16).

        Nesse momento, em que as estatísticas oficiais continuam a destacar a estreita relação entre nível de escolaridade e renda, cabe retomar os estudos sobre a diferenciação social e seu papel na manutenção das desigualdades entre os grupos sociais. Estes estudos sobre a relação escolaridade/renda e desigualdade social, desde a década de 50, – quando se consolidou o campo das Ciências Sociais no país – vêm discutindo e interrogando a situação nacional, ampliando o conhecimento sobre a realidade brasileira numa tentativa de superação do sub-desenvolvimento, um tema caro na virada dos anos 50/60, hoje mais caracterizada como situação periférica em relação aos países e economias centrais.

        As lideranças estudantis entrevistadas aparentam possuir um senso do jogo mais apurado, além de habilidades e competências não disponíveis a todos, distinguindo-se assim da massa estudantil pela visibilidade que o movimento estudantil propicia, demonstrando a aquisição de um habitus universitário específico. Decorre daí, na maioria dos casos, a ampliação da estrutura e volume de capitais social e simbólico de grande impacto nos processos de trânsito pelos diferentes campos que compõem o espaço social. A influência do movimento estudantil no acúmulo de capital social e/ou cultural e na sua conversão em outros tipos de capital, político, profissional, econômico, foi confirmada na análise dessas trajetórias. O acúmulo de certo capital social, mediante a inserção no movimento estudantil, já havia favorecido, com maior ou menor intensidade, o percurso na comunidade universitária, rendendo ou não dividendos simbólicos, de acordo com o status do grupo ou a posição nele ocupada pelo estudante.

        O conceito de capital, tal como reinterpretado sociologicamente na obra de Bourdieu, foi útil à compreensão dos processos de desigualdade material e simbólica que constroem e reconstroem as hierarquias sociais, inclusive na Universidade, e que permitem que determinados grupos reproduzam o status quo e, que outros, efetuem certa mobilidade social acionada pelo acúmulo do capital cultural (Bourdieu, 1983, 1996).

        A peculiaridade da instituição conferiu uma densidade ao ambiente que tende a homogeneizar os estudantes e os predispõe a práticas e características produzidas por uma experiência comum de socialização secundária. Participar do movimento estudantil nessa instituição adensa as possibilidades de acumularcapital político, social e cultural, com reflexos na atuação profissional. Os estudantes que participaram do movimento estudantil, principalmente como lideranças, adquiriram uma estrutura e volume de capital que os distingue e diferencia dos demais alunos, o que os tornaria mais competentes socialmente que seus pares que cursaram a mesma Universidade. Esses capitais, político, profissional e simbólico, podem ser reconvertidos em capital social e econômico com efeitos sobre as condições de luta no mercado de trabalho. Entretanto, a enorme heterogeneidade detectada – quanto à origem social dos sujeitos da pesquisa – apresentou como aspecto comum uma intensa mobilidade social ascendente, característica do período, marcado pela expansão das oportunidades de escolarização em todos os níveis, e que permitiu a inserção no ensino superior de estratos sociais anteriormente excluídos (Pastore & Silva, 2001).

        Entretanto o fenômeno da exclusão social continua na Universidade, evidente na alta evasão em alguns cursos superiores e que parece atingir, principalmente, estudantes oriundos de camadas populares.

 
Por que um conseguiu e o outro não conseguiu ? Será que ele não buscou, será que não tentou, ou será que as portas foram fechadas p'ra ele por que era negro ou veio de família humilde. Ele se conformou ou acabaram convencendo-o de que não era capaz, como as universidades fazem com a gente. Não é fácil, pra quem tem dificuldades financeiras, só permanece na Universidade quem tem muito peito. Por mais estrutura que a Universidade tenha, tudo é estruturado pra que o pobre faça o trabalho secundário e nunca seja liderança de nada. (Vera)

        Essa pergunta – 'por que um conseguiu e o outro não ?' – apresenta um questionamento similar acerca do fenômeno da desigualdade de desempenho escolar, alimentou pesquisa sobre trajetórias escolares de sucesso em meios populares:

 
Como se explica a chegada de diversas pessoas dos setores populares à universidade, enquanto tantas outras com características sociais, econômicas e culturais aparentemente análogas têm uma trajetória bem mais curta ? (Souza e Silva, 2003, p.17).

        Muitas das trajetórias dos militantes entrevistados apresentam coincidências com o trabalho de Souza e Silva (2003, p.158), no que tange à importância do sistema escolar e da Universidade, considerada "um dos principais instrumentos de ascensão social individual e de inserção qualificada no mercado de trabalho", para jovens oriundos de "grupos sociais menos providos de capitais".

        A origem social e as trajetórias anteriores apresentam, uma imensa heterogeneidade, mas devido ao efeito neutralizante da vida no campus, todos são estudantes e podem adquirem uma série de disposições comuns que favorecem a transformação do habitus primário. No processo de formação acadêmica, submetidos a uma convivência longa e intensa no campus, esses estudantes incorporam um habitus universitário, e um sentimento de pertença à instituição, à sua geração, ao seu grupo. Dessa forma, mesmo os estudantes com menor bagagem –quanto ao volume e estrutura de capitais – puderam acumular capital político, social, cultural, mediante inserção no movimento estudantil que, de forma declarada ou subterrânea, propiciou um patamar de distinção para os militantes, em relação à maioria dos estudantes da Universidade.

        A heterogeneidade quanto à origem social dos sujeitos da pesquisa apresentou como aspecto comum uma intensa mobilidade social ascendente, característica do período, marcado pela expansão das oportunidades de escolarização em todos os níveis, e que permitiu a inserção no ensino superior de estratos sociais anteriormente excluídos. Os sujeitos pesquisados empreenderam trajetórias de sucesso escolar, mediante estratégias específicas, familiares e escolares, que permitiram seu ingresso na Universidade, e para muitos deles a chegada à Universidade significou a confirmação dessa ascensão social já iniciada pela família, que vivia na zona rural há poucas décadas, segundo os estudos de Pastore & Silva (2001).

        Na Universidade também se produzem distinções, primeiramente entre cursos mais e menos prestigiosos, com relações diferenciadas quanto à proporção candidato/vaga, procurados preferencialmente por estudantes com volume de capitais também diferenciado, do ponto de vista econômico, social e cultural. Esses capitais tanto permitem o acesso a bens e serviços, padrões e práticas valorizados na Universidade e que garantirão o ingresso e a permanência em cursos mais conceituados, quanto são fruto de um trabalho de inculcação e assimilação efetivado ao longo dos anos de formação da criança e do adolescente (habitus primário ou se efetivam por um aparato de redes sociais influentes mantidas pela família. Os trabalhos de Bourdieu (1983, 1999) sobre a constituição diferenciada dos atores segundo a sua origem social e familiar e as influências dessa formação distinta no modo de vivenciar a condição estudantil, auxiliaram a análise.

        A Sociologia da Educação ampliou seus esforços de investigação acerca da influência da origem socio-econômica-cultural das famílias no desempenho dos filhos, fundamentada pela divulgação das estatísticas oficiais, e das análises da mobilidade social e a escolarização no Brasil.. Entretanto, entre os entrevistados que procediam de meios populares, se o fato da família não dispor dos capitais que favorecem o sucesso escolar não foi impeditivo do ingresso na universidade, foi no mínimo dificultador. A origem familiar influiu na maneira de vivenciar a condição estudantil, pois os sujeitou a uma série de entraves, demandando maior esforço para sua superação. Em contrapartida, os estudantes oriundos das camadas médias e altas já possuíam um perfil favorável ao sucesso escolar.

        Na estrutura social brasileira, é nos estratos sociais mais baixos, de origem rural, que a mobilidade ascendente se processa em escala maior, sendo que, é lá que "toda e qualquer movimentação social dos filhos representaria ascensão social", atingindo uma grande parcela da população (Pastore e Silva, 2000, p.3). Essa mobilidade ascendente marcou, nos últimos cinqüenta anos, a redução da base rural da pirâmide social, com o aumento das oportunidades de trabalho nos meio urbano e o 'esvaziamento' do rural.

        Os entrevistados da 'primeira geração' de militantes, nasceram entre a segunda metade da década de 50 até o início da década seguinte. Seus pais, nascidos nas décadas de 20 e 30, ingressaram no mercado de trabalho em pleno período de aceleração da urbanização e industrialização no país, de expansão do comércio, dos meios de transporte, pós-Revolução de 30. Esse fenômeno acelerou-se com o aquecimento da economia e da industrialização. O crescimento do aparelho estatal e do setor de serviços, iniciado na década de 30, se intensificou ampliando as camadas médias, cujos filhos ingressariam na Universidade a partir dos anos 60. Dessa forma, atendiam-se as demandas do mercado que exigiam trabalhadores qualificados para atividades de controle da produção e administração de empresas públicas e privadas, bem como para o magistério médio e profissões liberais, que requeriam formação em nível superior. O processo de urbanização do país viera acompanhado de uma melhoria no padrão de vida, aumento da renda e do consumo e das oportunidades de escolarização e trabalho..

        Os pais de cinco dos nove entrevistados da primeira geração eram originários da zona rural. Entre eles podem-se distinguir dois estratos: um composto por lavradores, semi-alfabetizados e outro por pequenos e médios proprietários rurais com o primeiro grau completo. Entre as décadas de 50 e 60, eles migram para centros urbanos, de pequeno ou grande porte. Os lavradores passam a ocupar funções humildes em pequenos centros urbanos que dispõem de rede escolar para os filhos. Os proprietários rurais, membros da mesma família, mudaram-se para cidades onde tornaram-se comerciantes, no ramo de panificadoras, um com sucesso e o outro, malsucedido, retornou ao campo, mas demonstrando efetiva preocupação com a escolaridade dos filhos, enviou-os para residências de parentes para que continuassem os estudos. Ainda compondo os estratos inferiores da população, apesar da origem urbana, e da atividade policial do pai e, posteriormente do padrasto, incluo a única mulher entrevistada dessa geração, cujo pai migrou do interior de Pernambuco, para o Rio de Janeiro, onde residia em bairros favelizados.

        Os outros três entrevistados da mesma geração, vêm de famílias de origem urbana, situam-se no ápice da pirâmide social, classes médias altas e altas. Os pais eram empresário, funcionário público e profissional liberal, com escolaridade de nível médio ou superior. Sem maiores dificuldades financeiras estas famílias propiciaram aos filhos uma escolarização de qualidade e uma condição de vida que lhes permitiu desfrutar da juventude sem preocupações com a subsistência, adequado ao que pode-se chamar de padrão entre os universitários da época. Entre estes jovens, um se destaca pela origem estrangeira, neto por parte de pai de um imigrante libanês e filho de mãe argentina.

        Os entrevistados da segunda geração possuem um perfil mais urbano. Destes, apenas dois entrevistados têm família com origem rural e pais com baixa escolaridade: um cujos pais migraram para o Rio de Janeiro, ainda na década de 50, e outra que o pai permaneceu na atividade agrícola, na Bahia, até a aposentadoria por invalidez. Os demais entrevistados dessa segunda geração já viviam há pelo menos duas gerações no Rio de Janeiro, sendo que apenas uma família pode ser considerada como pertencente aos estratos inferiores: o pai era trabalhador braçal (pedreiro), residente na Baixada Fluminense e com baixa escolaridade (Leonardo). Outros quatro estudantes da 'segunda geração' já integravam estratos médios, (Beto, Beth, Luiz Cláudio e Olavo), com pais funcionários públicos ou bancários, dois residentes na Zona Oeste, um na Zona Norte e outro na Zona Sul. Este último tem pais separados, que cursaram o nível superior, a mãe exerce função fora do lar, é bancária e comerciante, sendo a chefe da família. Uma estudante, classificada como pertencente aos estratos médios superiores, devido ao local da residência, Ipanema, ocupação dos pais, professores de ensino médio e superior, além de ter estudado em colégios de prestígio (Denise).

        Entre esses jovens, cujas famílias migraram para o centro urbano buscando a melhoria da qualidade de vida, identificou-se como traço comum, as dificuldades de acesso à escolarização e o trabalho árduo. Apesar dos pais desses estudantes terem pouca ou nenhuma escolaridade, os filhos conseguiram ingressar na Universidade Pública, continuando o processo de mobilidade social ascendente dessas famílias, que deixaram a zona rural, procurando no meio urbano outra atividade econômica.

        Foi pequena a ajuda que essas famílias disponibilizaram para os filhos na relação com a escola, devido à privação de capitais. Entretanto, eles 'fizeram a sua parte', segundo os entrevistados, garantindo o acesso à escolarização. Os jovens efetuaram seus estudos com grande esforço: trabalharam e estudaram concomitantemente, cursaram o ensino médio noturno em escolas públicas, muitos em outras cidades, recebiam favores (roupas doadas, moradia e trabalho fornecidos por familiares). Finalmente, ingressaram na Universidade, apesar da baixa expectativa familiar.

        Bourdieu (1999) ao analisar as diferentes disposições e estratégias de investimento escolar adotadas pelas diferentes classes, afirma a tendência a um investimento moderado em relação ao sistema de ensino pelas classes populares, pobres em capital econômico e cultural. Os jovens dessas famílias têm um histórico de trabalho e privação desde a infância. Eles foram estudantestrabalhadores diferentemente de seus colegas das classes médias.

 
Era o mais velho, de três irmãos e praticamente não tive infância....Lembro que trabalhava numa loja comercial, varejo, cortando fumo.... Sempre estudei, em escola pública e não fiz o segundo grau na cidade por que lá não tinha. Tive que me submeter à parentes, em situação humilhante. Meu pai não contribuía com nada nesta casa e eu trabalhava e estudava na escola pública... (J.Elói)

Dos 8 aos 13 anos de idade eu vendia pão na rua. Todo dia, saia de madrugada, no escuro ainda e vendia pão. Foi uma infância de trabalho, mas também uma infância como de outra criança qualquer que se divertia muito também. (Edilson)

Estudei sempre em escola pública., e quando prestava Serviço Militar fazia o cursinho pré-vestibular à noite. Antes de entrar para o quartel, eu trabalhava como torneiro mecânico, como operário na fábrica, e fazia o Segundo Grau à noite. Era difícil fazer as duas coisas, dava um cansaço! Tinha noites que não conseguia prestar atenção na aula, dormia na sala.(Eloy)

        Eles são filhos de pais que não possuem aspirações de escolarização mais elevadas para a prole, e por isso não fazem uma cobrança intensiva em relação ao sucesso escolar, mesmo por que não possuem os capitais – cultural, escolar, informacional – necessários para isso. Como o ensino médio, e até o fundamental, foi visto como o limite pela família esses jovens tiveram que empreender estratégias próprias para superar essa limitação. Seus irmãos viveram a mesma situação, de estudo e trabalho, e vários chegaram a cursar o nível superior, ainda que, em alguns casos, sem o mesmo sucesso. Três entrevistados foram os únicos entre os irmãos que concluíram o nível superior. é comum nas camadas populares que as aspirações escolares sejam moderadas, priorizando carreiras escolares mais curtas, que favoreçam a rápida inserção no mercado de trabalho, como os cursos profissionalizantes de nível elementar e médio, visto que o investimento no mercado escolar geralmente oferece um retorno baixo, incerto e a longo prazo (Nogueira e Nogueira, 2002).

        As 'disposições para a ação' (habitus) incorporadas pelos sujeitos são sempre referentes à realidade social concreta, condicionando o grau de investimentos escolares feito pelas famílias, de acordo com a sua posição na estrutura social. Esse investimento está relacionado ao retorno provável em termos de rentabilidade do título escolar e as chances de sucesso ou fracasso de determinado segmento social na carreira acadêmica. Isto é, aos riscos que um investimento de retorno incerto ofereceria ou não, bem como ao tempo disponível para esse retorno: a formação universitária exige um longo prazo para seu término, retardando a entrada do jovem no mercado de trabalho, representando um peso para as famílias mais pobres.

        Já nas camadas médias, devido às chances de sucesso escolar mais elevadas, o investimento na escolarização é sistematicamente superior e acentuado, devido as aspirações de ascensão social em direção às elites, através do sucesso escolar dos filhos. Já as elites investem pesadamente na escolarização dos filhos, mas de forma menos tensa, pois não dependem do sucesso destes para ascender socialmente. Estudos recentes7 constatam uma diferenciação quanto ao investimento escolar nos filhos por parte das elites culturais – atribuem um valor maior à escolarização visando carreiras de prestígio – ao contrário das econômicas, em que a certificação escolar só "legitimaria o acesso às posições de controle já garantidas pelo capital econômico" (Nogueira e Nogueira, 2002, p.26). Este fenômeno ocorre nas famílias dos três estudantes da 'primeira geração' que integram os estratos médios e superiores, tanto n o que se refere à escolha das escolas quanto ao apoio financeiro dado aos filhos durante o curso superior.

        As dificuldades econômicas são uma constante entre os estudantes de origem humilde que ao ingressarem na Universidade não podem contar com o auxílio da família para o seu sustento. Na Universidade, os três estudantes mais pobres da primeira geração recorrem à assistência estudantil, requerendo auxílios como bolsa-alimentação e crédito educativo. Outro se mantinha com uma mesada modesta e outra com a pensão do pai falecido. Muitos trabalharam antes de ingressar na Universidade para juntar algum dinheiro até o crédito educativo ser liberado, garantindo assim, o sustento durante o curso. O crédito educativo foi à opção de muitos alunos na virada dos anos 70/80.

        Esta geração parece compartilhar, de forma mais presente, valores de solidariedade, como o demonstrado na atitude de 'dividir a bandeja', isto é, repartir a alimentação com outro colega, também desfavorecido, e assim reduzir os custos. Dois entrevistados declararam manter essa prática, comum entre os estudantes da época, durante todo o período da graduação. Essas dificuldades de sustento reforçaram os vínculos estreitando ainda mais os laços de amizade:

 
Eu tinha um companheiro, que não tinha, nem bolsa de alimentação e nem crédito de manutenção, e a gente dividia a bandeja. Durante quatro anos, nós dividimos a bandeja assim, e depois de dividir bandeja com alguém por tanto tempo, você é mais do que irmão, pois nem com um irmão, se divide a refeição assim.. (Eloy)

        Na segunda geração, todos os estudantes entrevistados, residiam no Alojamento, seja por necessidade econômica, seja para ficar mais próximo das atividades políticas e culturais. Pelo menos dois deles apontam uma queda no padrão aquisitivo familiar na década de 90, que os aproxima de seus pares de origem mais humilde.

        Percebe-se uma maior desigualdade nos recursos de manutenção entre os estudantes da primeira geração do que os da segunda, que além de residirem no alojamento, comem no bandejão. Nem sempre a igualdade de condições (eqüidade) será assegurada com o ingresso na Universidade, mesmo sendo esta uma instituição que favorece a permanência do aluno mais pobre, oferecendo alojamento e alimentação gratuitos. Os estudantes mais pobres enfrentam maiores dificuldades, tanto de cunho financeiro quanto acadêmico, que seus colegas de classe média.

        Os jovens provenientes das camadas baixas e médias, que integram a 'primeira geração' de entrevistados, continuaram a mobilidade ascendente empreendida por seus pais, concluindo o nível superior que lhes facilitaria o acesso às camadas médias. Destes cinco estudantes, três fizeram pós-graduação strictu senso (um mestrado e dois doutorados), exercem funções de relativo prestígio e autonomia, como assessor parlamentar, professor universitário da rede federal ou alto funcionário, outra como professora universitária da rede privada.

        Os três estudantes da 'primeira geração', provenientes de camadas médias altas, ao contrário de seus contemporâneos de estratos inferiores e médios, cursaram escolas públicas de 1º e 2º graus de qualidade ou colégios privados de prestígio, e durante a graduação foram sustentados pelos pais. Residiam em repúblicas, podiam desfrutar integralmente das benesses de ser "jovem" e "estudante", sem maiores preocupações com questões materiais. Possuíam, ainda uma relativa autonomia apesar de dependerem economicamente dos pais, à semelhança do perfil do estudante descrito por Foracchi (1977). Dois deles ingressaram no corpo docente da Universidade, na época ainda uma carreira de prestígio, e se não empreenderam uma mobilidade social ascendente, do ponto de vista econômico, o fizeram, intelectual e simbolicamente, concluindo o doutorado. O terceiro é empresário do ramo de consultoria de orçamento e planejamento público, filho de arquitetos, iniciou mas não concluiu o curso de mestrado, e se também não efetivou uma mobilidade ascendente, luta para não perder a posição conquistada. Na época da graduação, ele representava o que seus colegas militantes identificavam como 'burguês': residia em 'um apartamento de um andar inteiro' na Zona Sul, o avô era fazendeiro.

        Os sujeitos da pesquisa, como um todo, empreenderam trajetórias escolares de sucesso e essa constatação vem ao encontro da concepção predominante nos estudos da 'sociologia das trajetórias escolares' de que o 'pertencimento a uma classe social' não é mais o fator determinante e exclusivo dessas trajetórias, devendo-se considerar a dinâmica interna das famílias e as características 'pessoais' dos sujeitos, que apresentam relativa autonomia em relação à classe social , ao analisarmos a 'dialética complexa' das trajetórias escolares (Nogueira, 2002, p.58).

        A investigação identificou que, não somente o movimento estudantil, mas também as demais experiências associativas produziram um sentimento de pertença à Universidade ou ao grupo, funcionando como apoio sócio-afetivo no período de graduação. Entre os estudantes entrevistados, um grupo8 - os 'camarões' - se destacou como 'exemplar', devido a esse forte sentimento de pertencimento, ao acúmulo de capital social e à manutenção de um vínculo duradouro que personifica a experiência de ser aluno da Rural. Os 'camarões', membros da 'segunda geração' apontam para uma nova sociabilidade militante, pois anteciparam uma prática mais consistente de mobilização estudantil que respondia, mais adequadamente, as mudanças que vinham ocorrendo no movimento estudantil, superando a tradicional partidarização das entidades estudantis.

        Os 'camarões' representam a emergência de um segmento estudantil que inserindo-se em movimentos sociais, novos ou tradicionais, desenvolveu uma participação política, a que se atribui um maior grau de consciência e autonomia, pois menos atrelada a instâncias políticas que se impõem, do alto e de fora, ao meio estudantil. Esse diferencial em relação às gerações anteriores se manifestou também em formas organizativas mais descontraídas e diversificadas induzindo à participação um contingente mais amplo e variado de estudantes.

        Dentro dos limites deste estudo, acredito ter chamado a atenção para a importância do movimento estudantil, bem como de outras experiências associativas juvenis, na socialização política, na construção de um habitus universitário distinto, no acúmulo de capitais que favorecem trajetórias acadêmicas e profissionais bem sucedidas. De modo geral, as estratégias utilizadas, e a riqueza do caldo cultural existente no campus, minimizaram as determinações da 'bagagem socialmente herdada', assim como, em alguns casos, as estratégias significaram investimentos conscientes, no sentido de superar a 'herança' (Bourdieu, 1989, 1997; Nogueira, 2002).

        O estudo constatou que as influências sócio-culturais-familiares se diluem na intensa experiência comunitária propiciada pela Universidade Rural. A peculiaridade da instituição, que assemelha-se quase a uma instituição total, confere uma densidade ao ambiente que tende a homogeneizar os estudantes e os predispõe a certas práticas e características produzidas por uma experiência comum de socialização e favorece o estabelecimento de vínculos duradouros, constituindo um capital social diferenciado das demais instituições. Participar do movimento estudantil em uma instituição peculiar como a Rural adensa as possibilidades de acumular capital político, social e cultural, com reflexos na atuação profissional. O impacto da intensa convivência propiciada pela instituição, mais especificamente sobre os estudantes residentes, foi destacada como favorável a uma participação mais marcante no movimento estudantil, exercida no cotidiano da sociabilidade no campus., no que se refere à formação dos estudantes.

        No período da graduação, diferentes trajetórias se encontram e se vinculam, mediante uma intensa e próxima convivência no campus, favorecendo a constituição de uma disposição social comum, marcada pelo mesmo habitus universitário e potencializada, em nosso caso específico, pela participação no movimento estudantil. Essa experiência comum aos vários militantes sujeitos da pesquisa confirma o caráter formativo do movimento estudantil intensificado pelo efeito padronizador da Rural. A militância estudantil torna-se uma experiência muito forte que consolida a homogeneização das múltiplas e desiguais experiências pessoais anteriores, mesmo entre estudantes com diferentes volume e estrutura de capitais, além de estabelecer um patamar de distinção entre os militantes e os demais estudantes (Paula, 2003a).

        Concluindo, foi possível detectar a influência na transformação do habitus na atuação acadêmica, social e política do estudante, ao mesmo tempo em que esse mesmo habitus se modificava pela influência do novo meio, consolidando um habitus universitário. Constituído no processo de "socialização universitária", o habitus universitário engendra "certa homogeneização das práticas relacionadas ao conhecimento e à formação profissional", e articula "comportamentos, percepções, expectativas e escolhas" e onde o habitus escolar seria sobreposto progressivamente pelo novo habitus universitário (Paes de Carvalho, 2004, p.200; Paula, 2004).

        Na Rural, devido à maior permanência do estudante no campus, a aquisição do habitus universitário pode ser mais rápida do que nas outras Universidades, com destaque para a importância da convivência entre os pares, da multiplicidade cultural, do contato com experiências políticas e associativas diferenciadas que constituem um acessório adicional distintivo na bagagem de uma parcela reduzida do estudantado, com inferências sobre seu futuro profissional. Do mesmo modo, a inserção no movimento estudantil, também sob a influência da peculiaridade da instituição, tenderia a ser mais forte, favorecendo a aquisição de disposições específicas, fornecendo opções, expectativas, percepções e comportamentos também diferenciados que marcariam sua trajetória futura. Concluo evidenciando a influência do movimento estudantil como diferencial na formação universitária e na trajetória profissional dos sujeitos da pesquisa.


1 Artigo sobre a Tese de Doutorado em Educação, intitulada "O movimento estudantil da UFRuralRJ: memórias e exemplaridades", defendida na PUC-Rio em 31/05/2004, sob a orientação da Drª Zaia Brandão.

2 Inicialmente, foram 16 os estudantes entrevistados individualmente. Todos exerceram cargos de direção no DCE da Universidade. Ingressaram no nível superior com cerca de 19 anos. Hoje eles têm entre 28 e 48 anos. Foi, ainda, realizada uma entrevista coletiva com 13 membros de uma gestão específica do DCE.

3 Muitos desses vestibulares são realizados em escolas agro-técnicas federais, localizadas na zona rural das diferentes regiões do país.

4 4 Entre 1986-88, mais especificamente, em 1988, quando ocorre a ocupação do MEC, por 30 dias.

5 Os estudantes da Primeira geração nasceram entre 1955 e 1966 e ingressaram na Universidade entre 1974 e 1984. Reconstruíram o movimento estudantil no período da ditadura militar, criando o DCE-Livre.

6 Os estudantes da Segunda geração nasceram entre 1965 e 1976, e ingressaram na Universidade entre 1986 e 1996. Sua participação no M.E. marcou um momento de intenso repúdio ao atrelamento das entidades à correntes partidárias.

7 Nogueira (1998, 2000, 2002), Brandão (2000, 2001, 2003).

8 Os 'camarões' integraram a gestão do DCE "camarão que não nada a onda leva" (92-03), mas a origem do grupo, mais amplo do que a Diretoria do DCE, foi a ocupação do MEC em 1988.






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